Ou limpe a prataria, tempere o peixe, cure a gripe. Cada um tem seu jeito de enfrentar as adversidades e seguir em frente ainda mais forte. Basta achar a receita que tem mais a ver com você.

Em fevereiro de 2000, Adriana tinha acabado de voltar de uma viagem de férias pela Bahia, mas não se sentia descansada. Assim que voltou para São Paulo, Adriana estava quieta, distante, desligada… Seu comportamento passou a preocupar a família, e em uma consulta médica foi sugerido que ela estivesse em depressão. O psiquiatra que a atendeu estranhou: a depressão não costuma progredir com tamanha velocidade. Além disso, Adriana apresentava outros sintomas: tinha a visão turva, passou a movimentar o braço de maneira mais mecânica, se esquecia de coisas simples como as regras de um jogo de baralho. Dias depois, ela se sentiu tão mal que a família a levou ao hospital. Ao descer do carro, Adriana teve de ser levada de maca, tamanha sua incapacidade de movimento. Depois de um exame de ressonância magnética, o diagnóstico: ela estava tendo um derrame.

O que se seguiu a essa notícia é todo o furacão que é capaz de devastar a estabilidade física e emocional de uma pessoa que passa por um Acidente Vascular Cerebral (AVC), levando no redemoinho a família, os amigos e quem mais estiver por perto. Adriana Fóz tinha apenas 32 anos, era psicopedagoga e tinha uma saúde plena. Mas, depois de uma cirurgia de remoção de um coágulo, um mês de internação no hospital e muita reabilitação, voltou para casa muito diferente de como saiu naquela tarde de fevereiro. E para se reconectar com a Adriana que costumava ser, precisou empreender uma nova jornada: teve de reaprender a escovar os dentes, resgatar expressões linguísticas esquecidas, andar e se locomover como fazia antes. Começar quase do zero na conquista de muitas de suas capacidades físicas, como se tivesse apertado um reset no lado esquerdo do cérebro.

Assim como Adriana, todos nós enfrentamos os nossos furacões. E precisamos levantar a casa, consertar os móveis e organizar tudo o que ficou devastado depois que eles vão embora. Seja uma separação, uma morte na família, uma doença, uma frustração profissional, a vida segue em frente, e precisamos enfrentar o cenário destruído que sobrou. Nem todo mundo lida com os problemas da mesma maneira. Filhos que perdem a mãe encontram formas muito peculiares de superar o luto. O fim de uma relação pode abalar profundamente a vida de uma pessoa; enquanto outra, na mesma situação, pode sofrer aqui e ali, mas logo estar de volta ao barco, já disposta a conhecer um novo amor. Como diz a nossa capa, a vida não vai lhe poupar limões. Pode ser um clichê, tudo bem, a gente sabe, mas os clichês são clichês porque estão cheios de verdades. E essa é uma delas. O que temos de aprender é como tirar o melhor proveito deles, seja limpando aquela prataria do passado que ficou escura e turva, curando um resfriado que não quer ir embora ou espremendo uma limonada para simplesmente retomar o fôlego e seguir em frente. Você que vai precisar se decidir quando três ou quatro limões forem colocados, assim, de surpresa, na sua mão. E não deixá-los cair, como o cara da foto da página anterior, já é uma forma de se manter bem no jogo.

Reorganização emocional

Após seu acidente, Adriana começou a estudar mais sobre neurociência para entender melhor seus próprios processos de recuperação. Um dos temas que ela passou a se dedicar com maior devoção era a plasticidade neural, ou a capacidade de desenvolvimento, recuperação e reorganização que nossos neurônios possuem – e que todos nós temos. Por conta das experiências da pessoa, o cérebro consegue reformular suas conexões em função das necessidades e dos fatores do meio ambiente. Assim como um GPS, é como se o cérebro, que conhece um caminho para realizar uma atividade (enviar estímulo para que o braço se mova, por exemplo), tivesse que “recalcular a rota” toda vez que encontrasse um obstáculo, uma dificuldade. “O que sabemos é que nosso cérebro e nosso corpo são aparelhados para a plasticidade, são construídos para enfrentar desafios e se adaptar”, afirma David Shenk, autor do livro O Gênio em Todos Nós. Fã de plantas e de jardinagem, Adriana não conseguia se lembrar do nome de suas árvores preferidas, como o ipê. Por isso, ia com seu enfermeiro aos parques e lia o nome científico das plantas que via, como forma de incentivar seu cérebro a aprender novas informações. “Diante de um ipê amarelo, eu sabia que conhecia aquela árvore, mas o nome dela não me vinha à mente. Comecei a mandar novas informações para o meu cérebro, como se abrisse uma nova pasta, para que ele pudesse, lá dentro, achar o caminho daquele outro arquivo que estava lá, mas que eu não conseguia acessar. Foi o atalho para eu encontrar minhas memórias antigas e superar o problema que o acidente tinha me imposto”, conta ela.

Outra saída vislumbrada por ela, para recuperar os movimentos, foi se inscrever em uma aula de samba, para poder aprender melhor como “soltar” o quadril e não ter de andar em passos mecânicos como o acidente lhe impôs. “O fato de eu ter sido sempre bastante esportista me ajudou muito, porque eu tinha registrado vários mapas mentais de movimentos no meu cérebro”, explica. Mas ela começou a perceber que, mais que reconstruir as sinapses e conexões de seu cérebro, ela tinha de encontrar novas formas de se conectar às suas emoções. Dançar, por exemplo, mais do que permitir levar ao seu cérebro novas informações de movimento, também a fazia sentir prazer. E isso a ajudava a continuar a dança mesmo quando seus movimentos físicos pareciam não aguentar. “A partir da minha prática, eu fui percebendo, graças a estudos de neurociência que li durante todo o período, que nem tudo se resumia à plasticidade do meu cérebro, que tinham outros fatores por trás daquilo”, conta.

Foi assim que Adriana cunhou o que ela chama de “plasticidade emocional”, ou seja, a nossa capacidade de se reorganizar emocionalmente para enfrentar os desafios. Diante de uma adversidade, passamos a buscar contato com emoções que nem sempre conhecíamos bem, mas que podem nos ajudar a enfrentá-la. “Tudo começa com uma simples crença de que cada pessoa tem um potencial imenso e que cabe a nós reunir todos os recursos ao nosso alcance para explorá-lo”, pondera Shenk.

O autor defende que não há nenhuma característica que seja 100% nata. Os seres humanos, tal como seus cérebros, conseguem se adaptar a qualquer situação, seja ela boa ou ruim. Aliás, Shenk acredita que a nossa adaptabilidade é tão grande porque temos dentro de nós a caixa de ferramentas completa para resolver qualquer tipo de conserto que precisamos para nos aperfeiçoarmos. O que nem sempre é fácil é identificar qual instrumento pode ser usado – e como usá-lo. Adriana, que sempre foi uma pessoa mais introvertida, fez aula de clown para aprender a rir das coisas, encontrar o humor nas situações – inclusive naquelas que ela mesma vivia, derrubando água por não ter firmeza na mão, esquecendo palavras, etc. “O humor me ajudou a rir de mim mesma e a deixar as coisas mais leves”, diz. Buscar o oposto das nossas emoções nos ajuda a nos flexibilizar, ampliar o nosso repertório emocional, uma característica indispensável da superação. Porque o jogo de cintura – que Adriana aprendeu nas aulas de samba – é a chave para encontrarmos novas formas de resolver os problemas.

Soluções criativas

Nesse sentido, a criatividade é vital. Sem ela, deixamos de vislumbrar outros caminhos (ou outras conexões, para mantermos nas metáforas cerebrais) e nos paralisamos. “O potencial para a criatividade está embutido na arquitetura do nosso cérebro”, escreve Shenk. E das nossas emoções, me permito completar. A adversidade, inclusive, é o adubo necessário para que a criatividade possa florescer. Do contrário, dificilmente nos obrigaríamos a pensar em maneiras novas de fazer alguma coisa. O que seria da poética de Chico Buarque sem as censuras da ditadura, ou da musicalidade do Bolero, de Ravel, não fosse sua limitação neurológica pela afasia progressiva (que induz a comportamentos repetitivos) de seu compositor? Quando o chef americano Grant Achatz, dos restaurantes Alinea e Next (ambos em Chicago) e um dos mais conceituados do mundo, descobriu um câncer na língua, pensou que iria morrer ou ter de deixar de cozinhar. O médico consultado recomendou que ele usurpasse a língua, perdendo a capacidade de falar ou de sentir os sabores. Achatz relutou e resolveu enfrentar o tratamento: sessões intensas de quimioterapia e de radioterapia o fizeram perder o paladar por cerca de um ano. Para um chef, não poder sentir o gosto da comida que prepara é o pior dos pesadelos.

Mas ele não abandonou a cozinha. Continuou criando pratos e receitas seguindo sua intuição e com a liberdade de não ter de pensar no gosto que aquilo teria – essa tarefa foi transferida a membros de sua equipe, que depois atestavam se faltava algum tempero ou se estava mesmo comestível. Mas a alta temporária de paladar o fez um chef melhor, ele costuma dizer. À medida que seu paladar foi sendo restabelecido, o primeiro e único sabor que ele conseguia sentir era o doce, como acontece com os bebês. “Uma colher de sal na minha boca não tinha gosto algum, o que era estranho. Mas ao mesmo tempo, fui provando ingredientes, frutas e vegetais e descobrindo as nuances de doce que eles tinham, e como isso podia ser usado em várias receitas”, disse ele à New Yorker. Aos poucos, o amargo, o salgado e o azedo foram voltando à sua percepção gustativa. “Tive o prazer de redescobrir os sabores, e me apaixonar por eles de novo”. Que outro chef de cozinha teve a mesma chance de passar por uma reeducação de paladar em plena ascensão na carreira?

Pensar positivo

Achatz podia ter se resignado à doença, entrado numa depressão. Mas preferiu aproveitar a experiência e tirar dela um proveito positivo. Destrinchar todos os possíveis sabores do limão que a vida lhe deu, e não só o amargo. Essa conotação mais otimista é o preceito principal da psicologia positiva, que prega uma visão mais aberta e apreciativa dos potenciais, das motivações e das capacidades humanas. “Ela surgiu exatamente da necessidade de colocar o foco da psicologia no aspecto funcional do ser humano, para além da doença”, afirma Lilian Graziano, psicóloga e diretora do Instituto de Psicologia Positiva e Comportamento.

Se as outras correntes focam justamente nos traumas, nos transtornos e nos distúrbios de seus pacientes, a psicologia positiva foca na felicidade – e ela não é feita de fotos de gatinhos, arco-íris nem adesivos de smiles colados no vidro do carro. A abordagem dessa psicologia é em estudar de que forma o conceito de felicidade muda no decorrer do tempo e quais estratégias podem aumentar a felicidade das pessoas. “As pessoas estão mais focadas no hoje, na urgência de serem felizes agora. E precisamos criar ferramentas para ajudá-las nessa tarefa”, escreve a psicóloga e professora de psicologia da Universidade da Califórnia, Sonja Lyubomirsky, no recém-lançado The Myths of Happiness (Os mitos da felicidade, sem edição no Brasil).

A psicologia positiva surge elencando forças pessoais que são baseadas em virtudes consideradas universais, e que todos possuímos – em maior ou menor grau. O trabalho dos especialistas é ajudar as pessoas a acessarem essas forças e, assim, poder resolver seus problemas cotidianos ou enfrentar uma adversidade mais séria. “Ao tirar o foco da dificuldade, já conseguimos alterar nossa visão atributiva das coisas, colocando foco nas nossas qualidades, vendo os desafios como oportunidades”, afirma Sonja. Para a psicóloga Lilian Graziano, sempre há aprendizados e oportunidades. Saber reconhecê-los como tal e tentar tirar deles um proveito é o que nos permite evoluir. “É comum ficarmos cegos para as oportunidades que surgem dos percalços, assim como é fácil, também, esquecermos que, afora o problema em questão, também somos capazes de ter alegria e qualidades em outros setores da vida”, diz. Tal como um software, sua versão XP é melhor que a versão 2011 justamente porque houve correções dos processos que não estavam funcionando. Se não fosse a página dar pau, o sistema não rodar ou os hackers mostrarem que havia falhas que podiam corromper o funcionamento do programa, dificilmente as evoluções teriam sido contempladas. E sem elas, você não estaria lendo essa matéria, caro leitor. Graças ao salvamento automático do Word (sim, eu sou um jornalista à moda antiga), pude resgatar tudo o que tinha escrito. E ainda ter tempo para reler e corrigir umas coisinhas. Santa falta de energia!

 

Rafael Tonon é jornalista e amante da boa gastronomia. Já foi editor de Vida Simples e continua a escrever por aqui sempre que pode.

Fonte: abril.com